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November 24, 2016

Sorte, nordeste, trabalho

Dentro de um táxi em São Paulo a caminho do Banco do Brasil para atualizar meu cadastro depois de um período fora do país, um clássico diálogo entre estranhos se inicia:

— Chuva chata, né? — comenta a motorista sobre um fenômeno paulista quase diário.

— São Paulo, né? — falo sem muito interesse nem ganchos para novas conversas.


— Usando muito o Uber por aqui? — a motorista pergunta numa nova tentativa de diálogo com uma pessoa beirando o autismo.

— Bastante. Tô inclusive impressionado com a quantidade de motoristas aqui em São Paulo — cometo um erro rude deixando abertura para conversa.

— Você não é daqui?

— Não. Sou de Fortaleza. No Ceará — sempre que estou fora do Nordeste gosto de falar onde nasci e analisar os rumos que a conversa toma.

— Ah… legal. — mas ela expressa não achar legal ser do Nordeste.


5 minutos depois e apenas 10 metros adiante devido o engarrafamento, uma nova tentativa.

— Mas o que você tá fazendo aqui em São Paulo?

— Trabalhando. Acabei de chegar de Amsterdam, estava morando por lá.

Ela aparenta estar mais interessada. Ganho um ponto por ter morado fora. Mas havia perdido um por ser nordestino. Um novo começo. Na sua escala mental de valor, devo estar próximo do zero.

— Amsterdam? Que legal! Fumou muita maconha lá?

É criada uma situação estranha após o comentário original. Ela então tenta uma risada para quebrar o gelo — não do tipo kkkkk, algo mais na linha do rsrsrs. Sem sucesso.


— Mas o que você tá fazendo por aqui?

— Trabalho para o The New York Times em Nova Iorque. Estou em São Paulo morando com minha namorada e esperando meu visto para me mudar de fato.

Ela levanta a sobrancelha.

Parece que ganhei mais um ponto na sua escala de valores. O placar está: -1 por ser nordestino, +1 por ter morado fora, +1 por ir morar fora de novo.

— Que legal. Mas no que você se formou pra ter um emprego desses?

— Não me formei. Larguei a faculdade no último período para ir trabalhar no Rio.

— Nossa. Que puta sorte a sua de conseguir esse emprego sem ser formado.

Puta sorte.

E é assim que maior parte da sociedade me vê. Um cara com uma puta sorte. Não interessa ter escrito um livro, palestrado em mais de metade das capitais do país, ser alguém conhecido dentro do meu círculo profissional, ter passado por empresas de escala global, ter organizado um evento internacional fora do país. Em suma: ter trabalhado para caralho. Foi pura sorte.

Mas entre ter um diploma de universidade como pedigree ou ser alguém com fome de sucesso que muito trabalha, opto pelo último. Continuo — e sempre serei — um vira-latas nordestino.

A vida segue. Preciso resolver mais alguns problemas e pegar um outro táxi em São Paulo.